10 passos para se tornar doutor em qualquer coisa

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“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.”

  • Fernando Pessoa

Toda vez que me lembro desse poema é impossível não associá-lo a minha experiência acadêmica. Eu escolhi fazer física para ver o processo humano por trás do desenvolvimento de uma ideia. Eu me entusiasmava com a possibilidade de alguém em uma sala, usando nada mais nada menos que sua cabeça, conseguir descobrir algo sobre o mundo que nos rodeia. Eu tinha dúvidas se eu também conseguiria fazer isso. Na graduação, me encontrei tantas vezes atrapalhado, cheio de incertezas, totalmente o contrário do que eu via acontecendo com as pessoas ao meu redor.

Quando você é colocado na universidade você entra em uma sala onde todos vem de uma realidade muito diferente e agora são submetidos as mesmas regras. O choque é gigantesco. Porém, conforme você tem acesso ao material e aos professores e desenvolve seu ritmo, você começa a notar sua evolução e ver como que o que separava você daqueles que você julgava tão avançados era apenas tempo e treino. Na medida que você amadurece não só seu conhecimento mas também como pessoa você sentirá sua admiração pelos outros flutuar ferozmente. Quando eu entrei eu colocava todos num pedestal de gênio. Na medida que fui estudando eu vi as coisas mudarem, vi que muitas dessas pessoas só gostavam de falar coisas simples de forma dificil.

Conforme os tópicos foram ficando mais dificeis e eu fui avançando na carreira, acabei vendo que o passo a passo é muito mais humano do que algo sobrenatural. A prática constante, a dedicação exclusiva, a repetição, formam a base do caminho e a tentativa e principalmente o erro, são os guias para o progresso. Nessa altura, relembrava minhas primeiras interações e via como a galera tinha um ego frágil, sempre focando em parecer ser inteligente e se aproveitando de como é fácil impressionar a galera mais nova.

De longe a graduação foi minha fase mais estressante. Porém, assim que entrei na pós graduação, encontrei uma atividade que eu era bom: errar e tentar de novo. Tive o privilégio de trabalhar com pesquisadores incríveis e acompanhar eles por trás das cenas. Fiz um estágio em um laboratório no exterior, tive contato com pessoas que viviam exclusivamente da pesquisa. Discuti física com ganhadores do prêmio nobel, com seus filhos, com seus colaboradores. Com as esperanças da área, com os potenciais grandes nomes. Vi eles trabalharem. Trabalhei com eles. Fiz perguntas até concluirmos que não sabíamos o que estávamos fazendo. Desafiei os arrognates. Me associei com os que eu admirava. Tive ideias. Testei elas. Errei. Tentei de novo. Publiquei um paper. Apresentei eles. Tive feedback. Melhorei.

Eu aprendi uma lição, que acredito que responde a minha pergunta inicial. Como as pessoas tem ideias? Bom, até o momento o melhor que eu tenho a te dizer é que a única maneira de fazer algo que funcione é criando várias coisas que não funcionam.

Conclui meu doutorado depois de onze anos. O título em si apenas coroa a trajetória, mas é complentemente vazio de significado se o caminho não te fez transbordar de propósito. Eu me diverti muito desde que me encontrei nesse percurso. Hoje vejo o mundo de outra forma. Hoje entendo o mundo de uma outra forma. Estou feliz por terminar, porém não deixa de ser triste, pois nos 4 anos de doutorado e no meu ano de estágio eu tinha certeza que estaria fazendo algo que gosto muito. Mas é preciso seguir em frente. Tenho mais três anos garantidos, vamos ver o que o futuro me espera.


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