Como aprender como um doutor em Física?

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A resposta curta é: faça graduação, mestrado e conclua um doutorado. Note que não se trata dos títulos, mas da experiência de estar numa graduação, aprender o ciclo básico, migrar para o mestrado, iniciar um treinamento em pesquisa e seguir para o doutorado, passando seis anos de pós-graduação trabalhando em cenários onde os problemas não têm gabarito. Ou seja, contribuindo com o conhecimento vigente, mesmo que de forma singela, e pensando em formas criativas de dar o próximo passo. Caso você queira treinar sozinho, é possível. Mas o ponto-chave do treinamento, que eu diria ser inegociável, é o tempo.

Atualmente vivemos um boom de dicas, ou como essa galera adora chamar, hacks de estudo. Em grande parte, essas pessoas vendem a ilusão de se capacitar em algo de forma mais rápida. Propagandas como “aprenda tudo que a universidade ensina em 4 anos em apenas 4 meses” ou “a única aula que você precisará ver para aprender o tópico X” são comuns. Claro, há também as dicas de como ler mais rápido, como guardar as informações mais rápido, entre outras coisas. Também proliferam os vídeos com técnicas de estudo: leia e grife, leia, mas não grife, leia por 25 minutos e pare por 5, leia por 1 hora e pare por 10, estude ouvindo música clássica, sons ambientes, sons de chuva, lo-fi. Use um planner. Use o Notion. É infinito.

Quando vejo isso, me lembro das propagandas antigas de produtos de emagrecimento que passavam na TV aberta quando eu era pequeno, lá entre 2002 e 2004. O produto consistia em cápsulas mágicas que prometiam queimar gordura enquanto você dormia, assistia TV ou via um filme, acelerando o processo de emagrecimento. Os vídeos eram sempre sobre mudanças fantásticas em pouco… adivinhe a palavra… sim, pouco tempo.

Eu me lembro de pensar que se a solução é tão simples, por que o problema já não foi resolvido? A resposta é óbvia: porque não funciona. A mesma pergunta pode ser transposta para a questão deste texto. Se esses métodos são tão eficazes, por que não estamos todos aprendendo como nunca? Porque as dicas não funcionam. Dá para jogar a maioria no lixo. Tem tanta coisa ruim que fica até difícil achar os vídeos que realmente salvam. E esses, coitados, também são prejudicados pelo algoritmo, já que a ausência de promessas mirabolantes gera menos interesse, menos cliques e menos alcance.

Eu falo da posição de um consumidor assíduo desses conteúdos, mesmo que por curiosidade. Já vi mais vídeos sobre como estudar do que gostaria de admitir. Nenhum deles foi útil no meu processo de aprendizado. NENHUM. Honestamente, eu duvido que as dicas dessas pessoas sejam úteis para elas mesmas.

O que senti quando tentei aplicar os diversos mecanismos de retenção de informação? Que essas pessoas querem te passar a sensação de que melhorar seu jeito de estudar é melhorar as ferramentas que você usa, e não o ato de sentar e pensar sobre a informação. De todos os vídeos que vi, não achei um que tornasse o ato de estudar sustentável. Todos eram tão cheios de tarefas para preencher antes de sentar e estudar que acabavam sendo uma completa perda de tempo. Eles ganham sua atenção e te iludem, porque te dão a falsa sensação de produtividade, de estar fazendo algo para melhorar seus estudos, quando no fim você está apenas deixando seu aplicativo mais bonitinho.

Por exemplo, vi um vídeo sobre o Notion. Peguei um template sugerido. Tinha tantas camadas, tantas abas, com diversas recomendações para cada uma delas. Em uma você colocava os papers que estava lendo, em outra as suas notas, em outra o resumo das suas notas. Quando lesse o paper online, podia integrar diretamente com o aplicativo. Havia também uma aba de tarefas, que podia ser linkada aos papers. E por aí vai. Era uma teia extremamente complicada. Mesmo assim, dei uma chance. E o que notei? Fiquei viciado em otimizar a ferramenta, e não em obter retorno. O que isso quer dizer? Eu queria ter certeza de que o paper que li estava no lugar correto, com minhas notas extraídas e organizadas da forma “ideal”. Mas no fim, eu só estava movendo informações de um lugar para outro. Não estou dizendo que o Notion não seja útil. Mas nessa altura, eu já gastava mais tempo melhorando o aplicativo do que efetivamente pensando sobre o que estava aprendendo.

A mesma coisa acontece quando as pessoas usam a métrica de número de horas para estudar. No início da minha graduação, eu fui essa pessoa. Chegava facilmente a 8, 10 ou até mais horas de estudo por dia. Cada vez que sentia que precisava melhorar, aumentava a duração da sessão. Novamente, eu estava otimizando a métrica, ou seja o número de horas, e não o retorno. Desperdicei uma quantidade razoável de tempo. Dentre esse grande número de horas, quantas foram realmente úteis? Para leitura, talvez algo entre 4 e 6.

O ponto central é que estudar é um ato individual. É olhar a própria ignorância no espelho, se rebelar contra ela e criar uma maneira de superá-la. Foi quando comecei a parar de olhar para o externo e a tentar me entender como aprendiz que desenvolvi uma relação melhor com os estudos. Não tem atalho. Sente-se, leia, pense no que leu, tente reconstruir os passos à sua maneira e repita. Leva tempo, é difícil. Aprender é difícil. Não é você o problema; aprender é intrinsecamente uma tarefa complicada. Não tem negociação. A única forma de acelerar é aprender como você aprende e tornar suas sessões cada vez mais orientadas ao seu jeito de fazer progresso.

Mas como fazer isso? Comece se perguntando o que você gostaria de aprender hoje. Separe as grandes questões e quebre-as em perguntas mais objetivas. Por exemplo: quero estudar cinemática. Posso começar com a pergunta “como descrever a trajetória de um corpo?”. Note como essa pergunta é ampla, tão geral que fica difícil pensar exatamente no que você quer aprender com ela. Comece daí. Separe alguns livros, pelo menos três. Pegue o capítulo de cinemática e leia por cima. Veja o que eles destacam, pense na ordem da informação: por que a seção 1 vem antes da 2? Eu realmente preciso do que está na primeira para entender a segunda? Perceba com qual livro você se sente mais confortável.

Essa primeira filtragem mostra qual material é melhor para começar. Deixe os livros mais difíceis para uma segunda leitura. Leia o capítulo pensando na sua grande questão. Logo você vai cair em conceitos como grandezas escalares e vetoriais, o papel do tempo na trajetória, até chegar a alguma equação de movimento. Nesse processo, sua questão inicial evolui. Você pode ter dúvidas sobre vetores e pensar: por que preciso desse conceito em cinemática? Isso é progresso. Note como essa nova questão já é mais objetiva. Esse balanço entre frustração e evolução das dúvidas é aprender. Estar confuso faz parte. Engaje com o material, duvide dele. Depois disso, tente reconstruir os conceitos por conta própria. Se fosse montar a teoria da cinemática do zero, quais conceitos você introduziria primeiro? Seguiria a ordem do livro? O que é crucial para alguém que esbarre nas suas notas entender antes de chegar às equações de trajetória? Esse exercício melhora ainda mais sua intuição sobre o que está lendo.

O que descrevi acima é o processo que sigo até hoje. Alguém que chega ao doutorado já repetiu isso tantas vezes que desenvolveu habilidade em formular perguntas que trazem o melhor retorno imediato. No fim, o que separa alguém no doutorado de alguém que está começando a estudar é apenas tempo. E no ambiente de pesquisa, esse processo ocorre em cenários ainda mais arriscados. Nos estudos de cinemática, caso você trave, sempre há alguém a quem recorrer. Em pesquisa, não. Nada tem gabarito, nenhuma estratégia garante retorno, e chegamos a diversos becos sem saída todos os dias. Erramos constantemente. E isso é progresso. Errar, entender o que está errado, perceber onde a estratégia falhou, recalibrar e tentar de novo é a ação mais fundamental para aprender.

Aprender é uma ação desconfortável que aprendemos a gostar. Você se acostuma com a sensação de não saber algo e aprende a abraçá-la, animando-se com a ideia de entender determinado tópico. E é recompensado de duas formas: primeiro, por eventualmente compreender o que está acontecendo; segundo, porque o caminho te leva a novas questões que vão te inquietar. Essas são as sementes das suas próximas aventuras. Nunca acaba. Aprender é diminuir sua ignorância a respeito de uma questão e, ao mesmo tempo, escancarar o quanto ainda se é ignorante sobre tantas outras. Eu, particularmente, acho isso muito bonito.

Por fim, não deixe que esse caminho natural de evolução das suas dúvidas te cegue em relação ao seu progresso. Um dia, o seu primeiro semestre de graduação foi o maior desafio que você já enfrentou. Mais tarde, ele se tornará apenas o feijão com arroz do seu dia a dia. É fácil esquecer que um dia você não sabia aquele tópico e agora o utiliza com tanta fluência. Lembre-se sempre de se valorizar no processo e de comemorar as pequenas conquistas. Boa sorte.


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